Sangue é coisa de mulher, por Jarid Arraes, Ep. 5
92.
Sem pensar mais duas vezes
Enedina fez sua trouxa
Colocou as suas roupas
Embrulhadas numa colcha
Era pouco que levava
Quase nada sustentava
Até mesmo estava frouxa.
93.
Subiu junto com João
Na carroça ali parada
Acenou pra sua mãe
Que sorria emocionada
Mas nem mesmo quis chorar
Não deu para lamentar
Tava mesmo era engasgada.
94.
Foi olhando pro caminho
Numa estrada bem vazia
Todo aquele canto seco
Provocava era uma azia
Sentiu sede de beber
E também de entender
Tudo o que lhe acontecia.
95.
Seu João foi só calado
Não tentou nem conversar
E Enedina o estranhou
Mas não quis lhe questionar
Tinha que ter gratidão
Pela sua salvação
Para um dia lhe pagar.
96.
Viajaram por dois dias
Só pararam pra dormir
Foi debaixo de uma árvore
Que Enedina quis sumir
Quis virar um pé de vento
Pra correr sem um intento
E bem livre então partir.
97.
Na realidade dura
Da carroça que pulava
Todo sonho de menina
Com temor se misturava
Com aquela sensação
De que alguma assombração
Pela perna lhe puxava.
98.
Ao chegar na nova casa
Enedina quis correr
Era ainda mais fedida
Do que imaginava ser
Com a taipa desabando
E o telhado desmanchando
Dava medo de morrer.
99.
Era a casa um só quadrado
Com apenas um colchão
No canto o fogão de lenha
E uma porta de latão
Que levava para o fundo
Um espaço sujismundo
Com buraco pelo chão.
100.
O banheiro que era ali
Sem qualquer separação
E onde iria então dormir
Se existia um só colchão?
De repente veio o medo
Junto com um cheiro azedo
De cigarro com feijão.
101.
Como se pudesse ler
O que a menina pensava
Seu João já foi falando
Tudo aquilo que achava
Que vivia na pobreza
Mas se tivesse esperteza
Logo tudo melhorava.
102.
“Seu irmão quebrou a cama
Deu fim na televisão
Só sobrou esse lixeiro
Que eu chamo de mansão
Porque perto da cidade
A maior realidade
É o custo do tostão.”
103.
“Tenho ainda muita sorte
Porque moro nesse canto
O patrão que me ajudou
Chamo inté ele de santo
Porque tenho o que comer
Dá pra mim, dá pra você
Apesar de não ser tanto.”
104.
“Quando for segunda-feira
Eu te levo na escola
Bote todos documento
Dentro aqui dessa sacola
Quando a hora se achegar
Vamo lá junto mostrar
Sem mais nenhuma demora.”
105.
Enedina concordou
E pediu grande favor
“Deixa eu ir dormir lá fora
Na carroça do senhor”
Seu João lhe permitiu
Não gostou, mas assentiu
E dormiu que até roncou.
106.
Pela madrugada adentro
Enedina só chorava
Naquela carroça dura
A costela se estralava
Foi sozinha no sereno
No vazio desse terreno
Que Enedina soluçava.
O folhetim Sangue é coisa de mulher foi escrito por Jarid Arraes. Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente“, vencedor do APCA de Literatura na Categoria Contos, do Prêmio Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis“. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.
1º episódio: Episódio 1
2º episódio: Episódio 2
3º episódio: Episódio 3
4º episódio: Episódio 4
6 episódio: Episódio 6
7º episódio: Episódio 7
Revisão: Tatiane Ivo