Sangue é coisa de mulher, por Jarid Arraes, Ep. 4
65.
“Padim Ciço, me ajude
O que vou fazer agora
O senhor sabe melhor
Desse mundo todo afora
O que faço com Enedina
Como salvo essa menina
Me acuda nessa hora!”
66.
Foi primeiro que pensou
No compadre João Pereira
Em mandar José pra longe
Como a opção certeira
Tinha até já mencionado
Com João foi conversado
E sentiu-se milagreira.
67.
Disse que o marido fosse
Já chamar o Seu João
Tinha feito a sua escolha
E tomado a decisão
Ia ser melhor assim
Para dar então um fim
Sem causar destruição.
68.
O marido sem saber
Do que estava acontecendo
Animou-se já pensando
Em José se promovendo
Trabalhando com vontade
Mais pra perto da cidade
E a família só crescendo.
69.
José foi com o compadre
Pra morar bem afastado
Mas não foi muito feliz
Parecia incomodado
Não queria trabalhar
Não queria labutar
Nem virar um pau mandado.
70.
No entanto, a sua ausência
Pra menina fez um bem
Que em dias bem ligeiros
Já estava um novo alguém
Ajudava a mãe com gosto
Sem jamais se ter suposto
Que ela entendia também.
71.
Na cabeça de Enedina
Existia uma questão
Sobre ser agora moça
Sobre os atos do irmão
Era isso que existia?
E ela se conformaria
Sem poder ter opção?
72.
E a mãe, como vivia
Desde o dia que sangrou?
Quem havia lhe ensinado?
Ou também se conformou?
Muitas dúvidas dançavam
E até mesmo provocavam
Pelo pouco que escutou.
73.
Uma vez chegou na mãe
Perguntando sem rodeio:
“É só a mulher que sofre
Com o sangue e o aperreio?”
Mas a mãe ficou calada
Pensativa e até chocada
Sem saber dar um volteio.
74.
Enedina que insistia
Isso muito a incomodava
Se o pai também sangrasse
Sobre isso se falava?
Ou será que era mistério
Como um crime muito sério
Que por isso se guardava?
75.
Outra vez, sem paciência
Dona Leda apenas disse:
“Sangue é coisa de mulher
E mulher é bicho triste”
Pela casa ressoando
A resposta foi dançando
Feito coisa que existe.
76.
Foi aos poucos que Enedina
Com a mãe foi aprendendo
Que ser moça é uma vida
Toda cheia de silêncios
E a tristeza que chegar
Só se deve enfim chorar
Se ninguém estiver vendo.
77.
Mas a fome logo veio
E encheu a sua mente
Sem arroz dentro do corpo
Tudo é muito diferente
Não se faz tanta pergunta
Uma frase não se junta
Nem se olha tão pra frente.
78.
Sem a chuva para a roça
Sem o leite pras crianças
Toda a vida se transforma
Num borrão sem esperança
Se o pai não trabalhava
Até sal não se encontrava
Nem sequer numa lembrança.
79.
Foi num dia que voltava
Do açude que morria
Que Enedina até gritou
Sem crer naquilo que via:
O irmão bem na porteira
E a mãe com a cara inteira
Feito um bicho que grunhia.
80.
João Pereira estava lá
Com o braço até quebrado
O chapéu botado torto
E o cigarro pendurado
Tinha cara de desgosto
Não estava nem disposto
A qualquer desaforado.
81.
Enedina foi chegando
E de perto ela escutou:
“Seu moleque endiabrado
Tudo em casa já quebrou
Passa a noite numa farra
Bebe até soltar as garra
E o dinheiro se acabou!”
82.
“Eu não quero esse peste
Esses dias me bateu
Disse que foi sem querer
Que não viu que era eu
Mas meu braço tá partido
E ele ainda tem mentido
Do serviço que perdeu.”
83.
Dona Leda, muito braba
Gritou tanto que chorou
“Como cê faz uma dessa
E seu pai que te criou
Para ser trabalhador
Homem bom merecedor
De ir ver Nosso Senhor.”
84.
“Mas a culpa que foi minha
Eu deixei você sem rédea
Sem trabalho, sem escola
Preguiçoso pra mulesta
Só sabia era dormir
E eu nem ia sacudir
É por isso que num presta!”
85.
Enedina congelada
Na porteira se plantou
Segurava a lata d’água
Feito um ouro que encontrou
Como fosse a salvação
Para a sua perdição
Que esquecer ela sonhou.
86.
Ficou tão apavorada
Que mais nada ela entendia
As palavras que falavam
Pelo vento se escorriam
Enedina se tremendo
Com os dente té batendo
Muito mais se espremia.
87.
Foi aí que na bagunça
Dona Leda viu a filha
O seu medo estampado
E o tamanho da armadilha
Que viria por José
Todo cheio de má fé
Com maldade na braguilha
88.
“Meu cumpade, me perdoe”
Dona Leda foi falando
“O meu filho é um maldito
Eu vou mesmo concordando
Mas lhe faço outro pedido
Que não seja esse impedido
Eu já vou lhe implorando.”
89.
“Leve minha fia, então
Enedina é tão prendada
Vai cuidar da sua casa
Com comida preparada
Só precisa de estudar
Pra sua vida melhorar
Seja ela uma afilhada.”
90.
João Pereira fez a cara
De quem não possui certeza
Mas o fato é que a menina
Tinha boa a natureza
Era calma e dedicada
Muito meiga e delicada
E também tinha beleza.
91.
Como espírito sem corpo
Enedina se sentiu
Nada disso ela esperava
E nem mesmo consentiu
Mas qual era a opção?
Pra viver longe do irmão
Um caminho ali se abriu.
O folhetim Sangue é coisa de mulher foi escrito por Jarid Arraes. Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente“, vencedor do APCA de Literatura na Categoria Contos, do Prêmio Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis“. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.
1º episódio: Episódio 1
2º episódio: Episódio 2
3º episódio: Episódio 3
5º episódio: Episódio 5
6 episódio: Episódio 6
7º episódio: Episódio 7
Revisão: Tatiane Ivo